A Escravidão na África
A escravidão, na África, começa com seu próprio povo; as tribos brigavam entre si, e as populações derrotadas, nestas guerras, serviam como recompensa. Os derrotados viravam escravos, para servirem ali mesmo ou para serem embarcados para outras regiões. Havia guerras com o exclusivo fim de produzir cativos; o reino do Sego, a confederação Ashanti, o reino do Dahomé e as cidades-estados iorubas foram nações escravizadoras, que anualmente, lançavam seus exércitos em operações de envergadura. Guerreiros promoviam rápidos ataques nos territórios vizinhos, onde aprisionavam um punhado de aldeãos. As operações escravizadoras destruíam e desorganizavam a produção artesanal e pastoril de comunidades inteiras, fora as perdas de vidas motivadas pelos combates. Para cada africano desembarcado vivo nas Américas, dois outros teriam morrido, na África ou em alto mar, em decorrência das violências, diretas ou não movidas pelo tráfico.
Eram muitos os caminhos que levavam um africano ao cativeiro. Uma enorme quantidade de cativos vendidos aos escravistas resultava do seqüestro furtivo de crianças e jovens por africanos em busca de lucro fácil. Crianças eram trocadas pelos pais, em momentos de carestia, por alimentos. Africanos viciados em jogos de azar perdiam filhos, esposas e a própria liberdade em apostas. A justiça africana também foi responsável pelo envio de milhares de homens e mulheres ao cativeiro. Inúmeros atos eram punidos com a perda da liberdade e com a venda do culpado. Um criminoso era entregue aos parentes do falecido para ser vendido. O adultero passava a ser propriedade do marido traído, os casais espertos faziam verdadeiras armadilhas à jovens inexperientes, que pegos se transformavam em escravos. Homens e mulheres acusados de feitiçaria, o roubo, dividas não pagas, em fim qualquer tipo de delito faziam com que estes indivíduos virassem parte da carga de um tumbeiro.
O Tráfico
Terminada a compra dos cativos, os negreiros começavam os preparativos para travessia atlântica. Os alimentos e a água eram embarcados em quantidades mínimas. O espaço útil se destinava a ser atulhado de escravos. Um copo de água a cada três dias, para alguns capitães, era suficiente para manter em vida, por meses, um negro. Eram comuns as lutas e disputas nos porões escuros dos navios, por um pouco de espaço. Como mercadorias, antes de subirem aos navios os negros eram carimbados. Sinetes de ferro ardente marcavam os braços, as nádegas, os rostos ou qualquer outra parte do corpo o sinal do proprietário ou da nação escravista. Negros aterrorizados jogavam-se ao mar ou organizavam desesperadas revoltas. Cativos negavam-se a comer, e enlouqueciam. Os negreiros encerravam os cativos nos porões, quando da partida dos tumbeiros. O que além de prevenir desesperadas rebeliões, impedia que os negros vissem como se manobravam os navios. Nos movimentos de revoltas, dentro dos navios, os chefes identificados, eram torturados e executados. Houve revoltas que levaram à destruição dos navios e à morte dos tripulantes e escravos.
Os primeiros africanos foram transportados em caravelas ou naus; e as mais variadas embarcações – charruas, carracas, patachos, chumacas etc. começaram a ser utilizadas como tumbeiros, e transportavam em média de 100 a 400 indivíduos. Já no final do séc. XIX, eram usados modernos navios a vapor com capacidade para transportar até 1.000 escravos. Era altíssima a mortalidade de escravos transportados por estas embarcações, a taxa de mortalidade chagava a 14% do total , pois uma viagem da costa ocidental ao Brasil durava de 30 a 40 dias; e os navios que partiam de Moçambique viajavam em torno de 2 meses.
Embarcados os cativos eram alimentados duas vezes ao dia, pela manhã por voltas das 10 horas e das 4 horas da tarde, quando recebiam para comer arroz, farinha de mandioca, feijão, milho e pequena quantidade de peixe salgado. Geralmente os alimentos eram mal preparados e sem temperos, os cativos sofriam, então, de vômitos e disenteria durante e após a travessia. Como os escravos doentes defecavam, urinavam e vomitavam sem que pudessem aproximar-se das precárias latrinas ou dos baldes; mandavam-se lavar, duas vezes por semana, as cobertas com vinagre ou água do mar; mesmo assim, na chegada dos navios se constatava um fedor aterrorizante que escandalizavam os espectadores nos portos. Os homens nus, os sexos desproporcionadamente grandes nos corpos magérrimos, a balançarem entre as pernas; as mulheres curvadas, esqueléticas, os peitos caídos, as barrigas chupadas, as crianças, pequenos zumbis, só olhos e pescoço.
Os tumbeiros saídos da costa da África aportavam no Brasil, após uma viagem que variava de 30 a 40 dias, e os provenientes de Moçambique, por diversos motivos, chegavam a demorar quatro meses no mar. O sofrimento e a mortalidade da carga, em um e outro caso, diferiam significativamente. Muitas vezes , ao avistarem a costa, até os negros batiam palmas e cantavam de contentamento. Terminava a viagem infernal. Nas proximidades dos portos, os negreiros sentiam-se mais seguros, distribuíam as reservas de água e de alimentos, permitiam que os cativos permanecessem mais tempo ao ar livre. Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luis eram os portos que recebiam os navios chegados da África, quando estes não se dirigissem diretamente para os portos Rio Grande (RS), Desterro, Belém e outros.
A Escravidão no Brasil
No ano de 1432 o navegador português Gil Eanes introduziu em Portugal a primeira leva de negros escravos, e a partir desta época os portugueses passaram a traficar os escravos com as ilhas Madeiras e em Porto Santo, logo levaram o negro para os Açores e depois para Cabo Verde e finalmente para o Brasil.
A primeira expedição colonizadora chegou ao Brasil em 1532, dando inicio à escravatura, que se desenvolveu em solo brasileiro em função da estrutura econômica e social do regime colonialista. A principio os índios foram à mão-de-obra escrava mais usada. Em seguida começaram a chegar ao Brasil os primeiros escravos vindos da África; alguns autores datam a chegada dos primeiros escravos em 1532, com a expedição de Martim Afonso de Sousa, e em outros estudos dizem ser por volta de 1550; independente de datas, o fato é que os navios negreiros aqui chegaram e fizeram deste tráfico a atividade importadora mais lucrativa do comércio exterior brasileiro, dando forças ao cultivo do açúcar, do fumo e do algodão, e também foram absorvidos pela economia mineradora e pelo serviço doméstico.
A escravidão é o regime social definido pela lei como a forma mais absolutamente involuntária de servidão humana, na qual os serviços de um escravo são obtidos pela força, e a pessoa é considerada propriedade de seu dono, o qual dispõe de sua vida; no caso do negro, é um absurdo o fato de transformar uma pessoa num ser inferior apenas por que ela tem outra cor, ou principalmente por que ela tem outra formação, esta escravidão racista transformou o negro em mercadoria, deslocando-o para um lugar estranho ao seu viver, onde não falavam a sua língua , onde não tinham os seus costumes, onde ele foi desumanizado, coisificado, animizado por seu senhor de escravo.
Mesmo sofrendo todas estas injustiças, e todas estas pressões o negro continua um ser humano, e aqui procurou continuar a amar, a ter filhos, a ter amizades, a trabalhar a sua maneira, a manter a sua religião, procurou manter a sua língua, procurou fugir, procurou sabotar o trabalho de seu senhor de escravo, procurou comprar a sua liberdade e procurou construir o seu mundo fora da escravidão. A escravidão só é aceita por quem escraviza.
O negro, na África, era encurralado pelo próprio negro; havia tribos que capturava o inimigo para vender, um Yorubá não considerava um Fon como seu semelhante, o considerava como inimigo e como individuo inferior que podia ser escravizado, e assim também acontecia entre outras tribos inimigas.
O escravo negro era uma mercadoria cara, valia muito dinheiro; e havia recomendações de como carregar os navios, só que a cobiça das pessoas que praticavam o tráfico era tão grande que colocavam nos navios muito mais gente do que cabia, de maneira que havia uma mortandade muito grande dos escravos embarcados. Havia um mercado especial para o escravo jovem, o chamado escravo português ou escravo do ouro, por que era comprado, geralmente, com ouro; e o escravo de boa aparência, de boa qualidade física que tinha entre 17 e 25 anos de idade, valia muito mais do que os outros.
Embora toda esta maldade da escravidão, houve casos em que o escravo se afeiçoava ao seu senhor e a família a qual servia, pois mesmo sendo regime de escravidão, é uma relação entre seres humanos; sabe-se de escravo que virou homem de confiança de seu senhor, e até chagava a representá-lo em algumas ocasiões, como na compra e venda de mercadorias, no transporte de seus valores etc..; houve casos de formação de sociedade do escravo com seu dono; claro que estes são fotos raros , havia diferenciação entre o escravo que trabalhava no campo cortando cana e plantando café, e o escravo que estabelecia um determinado tipo de relação pessoal com seus senhores, que podia até ser afetiva; contudo no geral o escravo vivia nas senzalas, quase sempre com excesso de trabalho e em condições precárias de higiene e salubridade, o que reduzia a vida útil à cerca de sete anos nas áreas de açúcar e do ouro. A mentalidade escravocrata era muito difundida na colônia e no império, provocando a desvalorização do trabalho manual e a presença do escravo em quase todas as atividades, como a extração de diamantes, a lavoura do tabaco, o artesanato e o trabalho doméstico.
Escravos e escravas eram também alugados por seus proprietários para a realização de atividades remuneradas, é claro que os valores passavam a seus senhores que compravam mais escravos com o ganho. Admitiam-se casamentos entre escravos e ocorriam também alforrias, quando o escravo era libertado, através de compra da própria liberdade ou por ocasião da morte de seus proprietários.
Os negros eram vendidos por seus sobás (chefes de tribos africanas) aos portugueses, e trazidos para o Brasil, principalmente para as regiões de Pernambuco e Bahia, até meados do séc. XVII; e no inicio do século XVIII seus maiores compradores passaram a ser o Rio de Janeiro e Salvador, e ainda neste mesmo século foram introduzidos nas regiões cafeeiras do Pará e do Maranhão e logo para o sul do Brasil; muitos destes deslocamentos eram feitos a pé, de um estado para o outro.
O grupo mais importante introduzido no Brasil foi o sudanês, que dos mercados de salvador, se espalhou pelo país, deste grupo a etnia mais notável foram os yorubás ou nagôs, da Nigéria, e os Jêjes do Daomé, seguindo-se os minas da costa norte-guineana, além dos tapás, bornus, galinhas, hauças, fulas ou fulanis e os malês ou mandingas. Esta presença comum dos grupos de idioma yorubá explica a maior influencia desta cultura principalmente nos segmentos religiosos . Dentro da própria África, a cultura yorubá predominava do Golfo da Guiné ao Sudão; tinham uma civilização adiantada, os costumes sociais, a organização política e a religião serviam de modelo a muitos outros povos. Os yorubás dominavam bem a agricultura, aliás, boa parte do que sabemos sobre agricultura tropical e sobre o pastoreio extensivo do gado, devemos ao povo africano, que dominava também a lida com o ferro e a produção de um aço de alta qualidade, o artesanato em cobre, madeira e as técnicas de mineração do ouro. É preciso saber que, antes da descoberta do ouro no Peru, no México e no Brasil, sobretudo o grosso do ouro que alimentava o sistema financeiro Europeu, Árabe e Islâmico vinha da África, principalmente de Burê, Bambuc, do País Ashanti, Sofala e Zimbábue, a África era o grande centro produtor de ouro.
Os bantos de Angola, tinham técnicas mais primitivas de agricultura praticadas por mulheres, e os homens criavam gado, e se vestiam com cascas de arvores , já na parte sudoeste, usavam vestimentas de couro e mantinham hábitos de caçadores e usavam armas de ferro; banto é uma família lingüística, ao qual faziam parte, também, os negros do Congo, Guiné e Moçambique; também faziam parte deste grupo os cabindas, benguelas, macuias e angicos. Por não terem nações identificadas e serem misturados de maneira aleatória, os bantos tiveram dificuldades de se integrar culturalmente. Alguns, escravos selecionados pelos senhores de terra, desempenhavam tarefas domésticas, e deste contato próximo, no interior da casa-grande, entre negros bantos e a elite branca que começou a se formar o sincretismo de raças, culturas e idiomas. Muitos hábitos, costumes, linguagem e alimentos do Brasil contemporâneo origina-se na cultura banto.
O negro não apenas povoou o Brasil, mas também contribuiu com o crescimento econômico, com as diversas matrizes culturais que serviram como fonte de desenvolvimento para o nosso país. Em 1830 se faz a proibição do tráfico de escravos no Brasil, porém esta proibição só pega em 1850, e a partir de 1852, não desembarcam mais escravos no Brasil; o último navio negreiro vindo para o país é uma corveta americana que é aprisionada em águas brasileiras; e aí começa haver um tráfico interno no Brasil, os negros começam a serem vendidos para o sul do país, para serem mão de obra na plantação de café; então há um relativo esvaziamento da escravatura no norte e uma grande marcha em direção ao sul; este foi um tráfico pouco estudado, mas extremamente feroz, violento, difícil.
O número de africanos introduzidos no Brasil durante o período superior a três séculos, em que houve a realização do tráfico, estima-se um total de 6.700.000 entrados no Brasil do séc. XVI ao XIX. De uma forma geral o negro era muito mal tratado , as senzalas eram constituídas Por uma serie de barracões, pequenos e abafados, com uma só porta e sem janelas, com chão de terra batida, que servia de lugar para dormir; a alimentação era racionada e geralmente eram servidos de feijão, farinha de mandioca e um pedaço de carne seca. Qualquer erro era cobrado com os mais severos castigos, desde a palmatória às chicotadas, que deixavam as costas e nádegas dos negros em carne viva, e ainda colocavam, nas feridas, montes de sal para que a dor se prolongasse por dias, para não ser esquecido o castigo recebido. Por esses motivos e muito mais, logo no inicio do século XVII, cerca de quarenta escravos fugitivos dos engenhos de Pernambuco, chegaram à serra da Barriga. Uma região de solo fértil, com extensas palmeiras; seus novos habitantes por isso deram o nome ao lugar de Palmares. A população dos Palmares, inicialmente era composta de escravos masculinos. Com o decorrer do tempo a aldeia começou a crescer; já havia criação de animais, lavraram-se campos, plantaram milho, feijão e mandioca, que passou a constituir a sua alimentação, além da criação de aves e porcos.
Com o crescimento da aldeia, já com a presença das mulheres, Palmares se transformou no quilombo mais importante da história da escravidão no país. As aldeias eram distanciadas umas das outras, tinham vidas independente, com chefes próprios, a principio estes chefes haviam pertencido à nobreza na África. Seus principais lideres foram Ganga Zuma e Ganga Zona, chefes das aldeias mais importantes, eram tios daquele que mais tarde se tornou o maior chefe dos Palmares, o negro guerreiro chamado Zumbi.
Várias expedições foram organizadas, durante anos, contra Palmares, todas sem sucesso. Palmares torna-se o centro de resistência contra a escravatura, em pleno séc. XVII, os negros eram considerados livres neste local. Outras expedições foram organizadas contra Palmares, e aos poucos iam enfraquecendo os quilombos, mas, apesar de já estarem com menos poder os negros, chefiados por Zumbi, continuam a fazer frente aos ataques inimigos.
Finalmente em seis de fevereiro de 1694, ajudados pelos canhões, os soldados abriram caminho, encurralando os negros contra um precipício. Mesmo ferido Zumbi consegue fugir e só foi aprisionado quase dois anos depois quando um negro, preso no caminho de Recife, em troca da vida, indicou o lugar onde o líder Zumbi estava. No dia vinte de novembro de 1695, Zumbi foi morto, teve sua cabeça decepada, e levada para Recife, por seu algoz, André furtado de Mendonça.
O quilombo dos Palmares, embora tenha sido o mais importante, não foi o único; no séc. XVIII , formaram-se quilombos no Maranhão, em Minas Gerais, às margens do rio das Mortes e em Araxá, todos destruídos.
Em 1807,a Inglaterra aboliu seu tráfico de escravos, e passou a reprimir o tráfico de outros países, inclusive Portugal. Para reconhecer a independência do Brasil a coroa inglesa exigiu o fim do comércio de escravos, e o Brasil assinou um acordo em 1827, comprometendo-se a acabar com o tráfico de escravos, mas esse acordo não foi cumprido, e o tráfico continuou até 1850. O movimento abolicionista foi crescendo e depois de várias leis paliativas, finalmente foi promulgada a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
A Escravidão no Rio Grande do Sul
Não resta a menor dúvida que o Brasil é uma das nações do mundo que tem sido profundamente influenciada pela penetração do africano, influencia extensa e geral, pois nenhuma região do território brasileiro escapou inteiramente de seu impacto. E o Rio Grande do Sul, como partícipe da comunhão brasileira, apresenta também as conseqüências desta penetração.
O escravismo gaúcho dos primeiros tempos foi um prolongamento do escravismo colonial brasileiro. O escravo entrou neste território, definitivamente ao lado dos primeiros lusitanos que chegaram ao Rio Grande do Sul, porém carregando as bagagens deste últimos. Há quem levante a tese de que o negro pisa em solo riograndense com a frota de João de Magalhães (1725); que saindo de Laguna, caminhou pelo litoral abaixo, até o canal da barra, para estabelecer uma recruta de guerra, capaz de impedir que os espanhóis, Tapes e Minuanos se introduzissem na campanha. Formavam-na trinta e uma pessoas, “sendo a maior parte homens negros escravos”.
Analisando outras fontes, dizem que a presença do negro no Rio Grande do Sul, é bem antes desta data; mais precisamente, é de fins de 1635, quando Raposo Tavares e sua bandeira percorreram os vales dos rios Taquari e Jacuí. Esta mesma fonte, baseando-se em observações de Jaime Cortesão, historiador da Formação Territorial do Extremo Sul do Brasil, dá a presença do negro aqui antes desta data, pois diz que, por ocasião do assalto às Missões Jesuíticas do Rio Grande do Sul por Raposo, já existiam entre os índios alguns mestiços, filhos de aventureiros de São Paulo. Outro autor nos fala sobre o assunto, dizendo que as primeiras entradas dos negros se verificaram no RS provavelmente na época da exploração de Maldonado pelos portugueses, mas admite que a fixação de escravos só tenha realmente ocorrido com o estabelecimento dos primeiros currais, invernadas ou estâncias. Parece hoje comprovada a presença do negro nas bandeiras do sul; como exemplo, pode ser tomada a célebre bandeira que fundou Laguna. Partira de São Vicente, integrada por 50 escravos pretos e dez brancos; mesmo,levando em conta que esta tenha sido enviada muitos anos após a vinda da última bandeira paulista ao nosso estado, se a percentagem de integrantes negros é de mais de 70%, por que não estariam presentes nas que antecederam vindas para o sul, mesmo sendo em reduzido número?
Fica suficientemente comprovado que o filho da África esteve realmente presente desde as primeiras arrancadas portuguesas em direção ao sul. Na verdade existe prova documental de sua presença no dia que foi lançada, pode-se assim dizer, a pedra fundamental da incorporação oficial do Rio Grande do Sul ao Brasil, em 19 de fevereiro de 1737, data da fundação do Presídio Militar do Rio Grande, pelo Brigadeiro José da Silva Paes.
Quanto a procedência dos negros, diz Souza Docca, que foi do porto do Rio de Janeiro, do tristemente famoso Mercado do Valongo, que vieram mais de 90% dos negros aqui introduzidos; Eles pertenciam a diversas tribos africanas, mais precisamente as culturas banto de Angola, Benguela, Congo e Moçambique; e sudaneses da Nigéria procedentes provavelmente das cidades de Ilesa e oyó, e os minas e jêjes do Dahomé. Os africanos e africanas de origem banto parecem ter sido a maioria no continente servil trazido para o sul.
Nos primeiros anos do novo século, começaram a descer, em direção do sul, tropeiros vicentinos em busca do abundante gado; essa prática possibilita a fixação do homem, as primeiras estâncias, os primeiros povoadores. A ocupação do sul, que se vinha dando em função da Colônia do sacramento, prepara os tempos em que a cidadela austral será um prolongamento, quase um apêndice, de uma ocupação que ela própria havia determinado. Foi de fundamental importância, o escravo nos primeiros tempos lusitanos nas margens do prata. O comércio de escravos, até a abolição da escravidão, foi sempre significativo. Na verdade, a função da Colônia de Sacramento muito deveu a essa atividade. Era principalmente, com o escravo africano que os portugueses conseguiam a prata Potosi, os couros, sebos, etc.
Grande parte destes escravos destinavam-se, sem lugar de dúvidas, à comercialização. Ma isso não ocorrerá. Tomada a colônia, 53 desses escravos serão transportados para Buenos Aires, como presas de guerra, e serão vendidos em hasta pública a razão de 385 pesos cada um. O comércio do homem escravizado era uma realidade cotidiana na colônia. É fora de dúvida que o comércio escravista sulino é anterior a 1780; porém antes desta data, os escravos eram trazidos, possivelmente, em pequenos grupos, por seus proprietários que aqui vinham se estabelecer ou por pequenos comerciantes. Com a industria do charque, surge uma atividade produtiva que “consome”, sistematicamente, mão de obra negra e cria inúmeras possibilidades colaterais de utilização do braço escravo, que antes dava as mãos à agricultura.
Fixadas as estâncias e inauguradas a agricultura de subsistência com a chegada dos açorianos, estabeleceram-se as primeiras charqueadas em Palmares do Sul, nas margens do Guaíba e na margem direita do baixo jacuí. Nessa primeira etapa, que se estende até 1779, as charqueadas eram isoladas e dispersas. A indústria se instalou, definitivamente, no Rio Grande do Sul, a partir da charqueada pioneira de José Pinto Martins, em Pelotas, no ano de 1779. desde então, graças à ampliação do mercado consumidor de charque, devido ao desenvolvimento da lavoura, no centro e norte do país, foram se multiplicando as charqueadas de pelotas, resultando num único centro produtor de charque, que perdurou por mais de um século, explorando a mão de obra escrava. O trabalho nas charqueadas era tão duro e estafante que só podiam apelar para o trabalho compulsório do negro. Desde os tempos de Pinto Martins, os escravos faziam parte de todas as tarefas das charqueadas. Até a crise final da escravidão no Brasil, a charqueada foi movida pelo braço do homem negro escravizado. Em média, uns sessenta cativos trabalhavam nas unidades charqueadoras sulinas. Algumas ultrapassavam 100 escravos. No século 18 e em grande parte do séc. 19, as relações sociais escravistas eram dominantes no Brasil. A produção do charque exigia um trabalho intenso, pesado e prolongado. As condições de trabalhos em uma charqueada escravista eram muito duras. A produção charqueadora exigia dos escravos, jornadas de dezesseis ou mais horas, realizadas em boa parte a noite; e o negro desfalecia de cansaço e de sono em seu posto de trabalho. Então era transportado para a senzala ou, nos casos mais graves, para o barracão pulguento dos enfermos, eufemisticamente chamado de “hospital”. Dormiria e se recomporia um pouco até que o capataz viesse acabar com a sua “malandrice”. Essas duras condições de trabalho e existência determinavam relações inter-humanas extremamente violentas. Em diversas épocas do Rio Grande do Sul colonial e imperial, com maior ou menos sucesso, charqueadas foram levantadas no Jacuí-Ibicuí, nas Lagoas dos Patos e Mirim, em Porto Alegre, em Rio Grande, em Jaguarão, no canal São Gonçalo etc. Devido à sua localização privilegiada em relação aos rebanhos gaúchos e uruguaios , ao porto de Rio Grande e as vias fluviais, Pelotas tornou-se o grande centro charqueador gaúcho. Conseqüentemente, um grande pólo escravista.
Com a pacificação do Rio Grande, nossa província reafirma-se como um grande centro escravista. Os dados indicam: em 1858, contamos com 70.880 escravos (quase 25% da população), dois anos mais tarde, em 1860, teremos 76.109 homens escravizados. Os escravos eram transportados, principalmente do porto do Rio de Janeiro, em escunas, bergantins, briques e sumacas; viajavam em uma quantidade irregular. O carregamento máximo, em 1802, foi o bergantim Águia Volante, que transportou 49 escravos, e somando-se a outras duas viagens, neste mesmo ano, este navio transportou um total de 111 escravos; e foi apresentado na intendência de Porto Alegre, 209 escravos, que teriam sido, segundo documentos, despachados para Rio Grande no bergantin Tristão, do mestre Jozé Thedoro de Andrade em uma só viagem. Então neste ano de 1802, teríamos uma introdução de 990 escravos no estado. A origem do afro-gaúcho , chegados aos portos brasileiros, eram na maioria das vezes indefinidas, pois nem sempre os portos de embarque, na África, definiriam a região de que proviam os cativos. A denominação sob a qual os africanos escravizados eram registrados não é, muitas vezes, mais do que uma indicação geral sobre suas origens ou etnias; assim podemos encontrar escravos provindos de Angola, Congo, Quissamba, Zaire, Benguela, Cabinda, Cassange de Angola e os Mina, provenientes da “Costa da Mina”, muitos destes escravos eram provenientes do interior das regiões africanas, podendo estar inclusos nestes grupos os negros de oyó e ijexá, da Nigéria e os cabindas de Angola, além dos jêjes do antigo Dahomé.
Tendo sido “legalmente” proibido, em 1831, o tráfico negreiro transatlântico, o comércio de escravos novos passa a ser uma atividade ilegal, porém, este tráfico continue sem tomar nenhuma medida de repressão, e perdura até 1850, quando então, sob as ameaças da Inglaterra, o império tomará a definitiva decisão de reprimir o tráfico negreiro. Isto não impedira tentativas clandestinas de desembarque de escravos. No Rio Grande do Sul, não foi diferente, apesar de toda vigilância, continua o desembarque de escravos no,litoral do RS, e o lugar preferido era a área de Tramandaí, possivelmente por ser pouco habitada, e a distribuição seria feita com mais facilidade, sem chamar a atenção das autoridades.
Os escravos tiveram presentes em quase todos os segmentos produtivos da sociedade riograndense. Descrevendo sua passagem por Rio Grande, Saint-Hilaire assinala a importância do trabalho negro. Nos arredores da aglomeração não havia fontes espontâneas de água: era necessário cavar poços. Eram os negros que iam buscá-la em barris, apanhando-a por meio de chifres de bois amarrados à ponta de varas compridas.
Os escravos se ocupavam das mais diversas tarefas caseiras, costumeiras profissões de escravos e escravas, plantavam verduras, vendiam no mercado couve, cebola, alface, laranjas etc.; auxiliavam nas atividades do comércio, transportavam mercadorias, além da infinitas atividades desempenhadas pelo homem negro escravizado. A organização econômico-social da colônia e do império assentou sobre o escravo africano o mais significativo da produção de bens materiais. No sul, o negro escravizado foi incumbido das mais variadas atividades. Em diversas regiões, os trabalhos mais estafantes eram-lhes quase monopólio. Grande parte das riquezas sulinas, dependeu da Constancia, produtividade e disciplina do trabalho escravo. Para que a produção compulsória, acumulação e reprodução de trabalho excedente se dessem na forma mais harmônica possível, o trabalho escravo e o escravo se enquadravam em estritos marcos sociais, jurídicos e ideológicos. O escravismo gaúcho, modo de produção dominante em importantes regiões do Rio Grande do Sul, determina profundamente, nossa formação social. O escravo subordinado ao poder do senhor, e além disto equiparado às coisas por uma ficção da lei enquanto sujeito ao domínio de outrem, constituindo assim, objeto de propriedade, não tem personalidade, estado. É pois privado de toda capacidade civil. O escravo, como “coisa” produtiva, tem que se ocupar das atividades que lhe são votadas; entregar a totalidade dos frutos de seu trabalho; viver com o que seu senhor julgue bom lhe entregar. O ritmo de duração de sua jornada de trabalho é, também, arbítrio do seu amo; o escravo se transforma em máquina, que alienasse ao máximo sua humanidade.
No Rio Grande do Sul, o suicídio entre os escravos foi também um fato cotidiano. Há inúmeros registros destes atos de desespero nos jornais do império e nas falas dos presidentes da província; muitas vezes o suicídio era forma de escapar do castigo do senhor ou do estado.
Aqui no sul, o escravo também matava para fugir e, algumas vezes alcançava seu objetivo; no arquivo público, encontram-se depositados inúmeros processos com as investigações judiciais e policiais, julgamento e ata de execução de escravos acusados. As charqueadas, com suas péssimas condições de trabalho e vida, deviam ser o palco continuo de semelhantes atos. Ali os escravos tinham a mão todo tipo de instrumentos cortantes para o trabalho da carne.
A fuga do escravo, era um acontecimento cotidiano no mundo escravista. No sul, a fuga do escravo é tão velha quanto a fundação do Presídio Jesus-Maria-José. A importância da fuga do escravo no RS explica-se na quantidade de anúncios sobre fatos que aparece nos jornais do império. Esses anúncios ofereciam recompensas pela captura, davam a descrição do escravo “fujão”, a roupa e bens que ele levava no momento da aventura. O escravo podia escapar para uma ou outra região, para um quilombo. No Rio Grande do Sul, ao contrário do resto do Brasil, o negro fujão podia alcançar efetivamente a liberdade; aqui ele procurava, sistematicamente, a fronteira castelhana, pois lá podia proclamar :”estou livre”. Os escravos gaúchos reagiram às brutalidades senhoriais, através das fugas, insurreições etc. Se no Rio Grande do Sul nenhum quilombo alcançou a dimensão do quilombo dos Palmares, não significa que estes não tenham sido importantes também aqui. Haja visto o quilombo de Manoel Padeiro, que talvez tenha sido o mais importante quilombada gaúcho do século passado. O quilombo do padeiro apresentava uma estrutura militar e uma rígida hierarquia e, devido a suas ações querrilheiras causava grande pânico na população local, assim como preocupação nas autoridades constituídas. Este quilombo foi destruído; mas os quilombolas geralmente foram uma ameaça à ordem constituída, pois eles representavam um estimulo às fugas e à desobediência servil. Porém, os quilombos não foram o único temor da leite escravista gaúcha, que sabia poder ser justiçada a qualquer momento pelos trabalhadores negros escravizados. Se somarmos as tentativas de revoltas, as insurreições e os levantes ocorridos no Rio Grande do Sul, em breve levantamento teremos quase três dezenas de conspirações coletivas no século passado: A vinda dos prováveis escravos baianos participantes da revolta dos malês seria um motivo a mais de preocupação para a elite pelotense que temia uma insurreição por parte da escravaria. O temor era plenamente justificado e quase se consumou, anos mais tarde, com a chamada insurreição dos escravos de origem mina. O plano deveria abranger toda a região e seria posto em prática no dia 6 de fevereiro de 1848, porém, o mesmo foi reprimido antes de sua execução, sendo vários escravos presos e punidos pelas autoridades policiais.
A resistência escrava gaúcha durou até o fim do regime escravista, em 1888, pois, ao contrário do que afirma parte da historiografia tradicional, o regime escravista não teve seu fim antecipado em 1884, como falsamente é propagado. A falsa abolição gaúcha em 1884, é fruto de uma campanha abolicionista que resultou na obtenção de um grande número de cartas de alforria por parte da escravaria. Porém, a obtenção das cartas necessariamente não traria a liberdade imediata ao trabalhador negro escravizado, pois a maioria das cartas passadas no ano de 1884 trazia consigo cláusulas de prestação de serviços. Cláusulas estas que mantinham os escravos, apesar de possuírem sua carta de alforria, ligados a seus senhores. O não cumprimento das obrigações legais estipuladas em tais documentos poderiam levar a anulação das mesmas. Assim sendo, as fugas, as revoltas e os quilombos permaneceram na província gaúcha até 1888 quando da promulgação da Lei Áurea, lei que assinalou o término da escravidão legal, mas não o fim das lutas dos afros-descendentes por sua cidadania.
A Religião dos Escravos
Os escravos africanos eram proibidos de praticar suas várias religiões nativas. A igreja Católica Romana deu ordem para que os escravos fossem batizados, e eles deveriam participar da missa e dos sacramentos. Apesar das instituições escravagistas e da igreja, entretanto, foi possível aos escravos, comunicar, transmitir e desenvolver sua cultura e tradições religiosas. Houve vários fatos que nos ajudaram a manter esta continuidade: os vários grupos étnicos continuaram com sua língua materna; havia um certo número de líderes religiosos entre os escravos; e os laços com a África eram mantidos pela chegada constante de novos escravos.
Desde o começo pais e mães de santos buscavam reafricanizar a religião. Isto foi possível em parte, por que a rota dos navios entre a África e o Brasil conservou viva a conexão entre os povos. Isto continuou mesmo depois da abolição da escravatura em 1888. Escravos libertos que puderam viajar para as áreas iorubás foram iniciadas no culto dos orixás e então, ao retornar ao Brasil puderam fundar terreiros e revitalizar a prática religiosa.
A partir da segunda metade do séc. 19, surgiram grupos organizados, que recriavam no Brasil cultos religiosos que reproduziam não somente a religião africana, mas também outros aspectos da sua cultura na África. Nascia a religião afro-brasileira, primeiro na Bahia, conhecida como Candomblé, e depois pelo país afora, recebendo nomes locais como Xangô em Pernambuco, tambor-de-mina no Maranhão e batuque no Rio Grande do Sul. Os principais criadores dessas religiões foram negros de nações Yorubás ou nagôs, especialmente os provenientes de Oyó, Lagos, Queto, Ijexá, Abeocutá e Iquiti, os das nações Fons ou Jêjes, sobretudo os mahis e os daomeanos, e os Bantos de Angola e Congo. Os ritos se desenvolveram na Bahia, em Pernambuco, Alagoas, maranhão, Rio Grande do Sul e, posteriormente no Rio de Janeiro e mais tarde em São Paulo.
As religiões afro-brasileiras ainda carregam os efeitos de sua interação com outras tradições religiosas, especialmente o catolicismo. Os Orixás, Voduns e Inquices, foram justapostos com santos católicos e o interior dos terreiros possuía numerosos elementos católicos, incluindo estátuas de santos, enquanto os objetos religiosos africanos eram escondidos. As religiões afro-brasileiras eram proibidas , e os terreiros eram freqüentemente visitados pela policia. Por isso seus participantes deviam sempre buscar caminhos para fortalecer a aparência católica dos orixás e dos terreiros. O sincretismo se tornou assim estratégia de sobrevivência por um longo período.
A Mulher Escrava
A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. O tráfico negreiro, enquanto pôde operar livremente, garantiu a reposição dos braços escravos indispensáveis ao funcionamento da sociedade colonial. Enquanto durou o tráfico, foram os senhores indiferentes à duração da vida de seus escravos. A situação da escrava empregada no trabalho produtivo, esteve necessariamente determinada pela sua condição de “coisa”, propriedade do senhor. Mas esta condição, compartilhada com o homem escravo, soma-se a particularidade advinda do fato de ser mulher, isto é, ocupar um papel privilegiado de reprodução biológica. A realização combinada dos potenciais produtivos e reprodutivos da escrava privilegiou o lucro imediato e conduziu objetivamente ao consumo de escravos no processo de produção. Compreende-se que sas “negras pejadas” e as que amamentavam não eram poupadas do trabalho: duras fadigas impediam em algumas o regular desenvolvimento do feto, em outras minguava a secreção do leite, em quase todas geravam o desmazelo pelo tratamento dos filhos, e daí as doenças e a morte das pobres crianças. A negra quando grávida , não recebia condições mínimas necessárias ao desenvolvimento do feto; e quando a gravidez vingava, estas condições levavam, muito freqüentemente, a matarem os próprios filhos. A mulher escravizada, sobrepondo-se aos naturais impulsos maternos, interrompia sua gestação ou eliminava o recém nascido. Assim o fazendo, quebrava o implacável elo que prendia sua descendência à escravidão. O aborto voluntário e o infaticídeo eram tidos pelos escravistas como formas conscientes de oposição ao cativeiro.
A mulher escrava fazia ponte entre a senzala e o interior da casa grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo senhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos desejos sexuais sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família.
A negação dos escravos enquanto seres humanos implicou necessariamente na negação de sua subjetividade, que foi violada, negada, ignorada, principalmente nas relações entre eles: mãe escrava – filhos, pai escravo – filhos e homem-mulher escravos. Era o senhor quem decidia sobre a possibilidade e qualidade da relação entre o homem e a mulher escrava, sobre se haveria ou não vida familiar, se casados ou concubinos seriam ou não separados, se conviveriam com os filhos e onde, como e em que condições morariam; não era certo a convivência em família. A legislação a respeito do casamento escravo era apenas mais um aspecto no qual prevaleceria o poder de fato do senhor sobre seus escravos. Ao ser mãe a mulher negra estava ameaçada com a separação eterna de seus filhos, pois o seu destino era incerto; se fosse vendida perderia a ligação com os filhos para sempre. Mesmo comprometida com um negro, a escrava, ainda assim, estava sujeita aos desejos sexuais de seu senhor, ; e um escravo não poderia queixar-se da infidelidade de sua mulher e vingar-se de seu sedutor.
A Mãe Preta: Enquanto a amamentação da criança escrava serve a preservação da “mercadoria escrava-leiteira”, dela pode se beneficiar o filho da ama. A existência de mães pretas revela mais uma faceta da exploração da senzala pela casa-grande, cujas conseqüências inevitáveis foram a negação da maternidade da escrava e a mortandade de seus filhos. Para que a escrava se transformasse em mãe preta de criança branca, foi lhe bloqueada a possibilidade de ser mãe de seu filho preto. A proliferação dos nhonhôs implicava o abandono e a morte dos negrinhos. Além disto os pais – senhores – são por hábito bárbaros e castigam fortemente os seus escravos à vista de seus filhos, que facilmente também se habituam à crueldade: é assim que se viam meninos e meninas esbofetearem a cara da escrava-ama que lhes dava o leite, é assim, que milhares deles castigam com cruéis açoites aqueles mesmos escravos que lhe os carregaram, que os alimentaram, que os embalaram na infância. Numa sociedade cuja ideologia dominante atribui à maternidade o papel de função básica da mulher, a escrava transformada em ama de leite conhece, na negação de sua maternidade, a negação de sua condição de mulher. Mesmo em contato estreito e continuo com a família branca, a ama escrava não recebia benefícios sequer dos cuidados mínimos que lhe pudesse garantir uma boa saúde. Nem mesmo quando era constantemente acusada de ser portadora de doenças graves, principalmente a sífilis. No entanto, seria igualmente possível que muita mãe preta tenha sido contaminada pelo menino de peito, alastrando-se também por esse meio, da casa grande à senzala, a mancha da sífilis. A sifilização da ama de leite, entretanto, não teve origem unicamente na criança branca. À apropriação e a utilização da escrava como ama de leite da criança branca raramente deixaria de se acrescentar, assim para mucamas, cozinheiras, amas-secas etc., também a apropriação de seu corpo como objeto sexual do homem branco.
Objeto Sexual: A sexualidade possível à senhora é aquela que lhe impõem as relações familiares patriarcais, norteadas pelos rígidos preceitos religiosos e morais. A escrava escapa a essas determinações que cerceiam as mulheres de classe dominante; sua sexualidade não está a serviço da procriação e da reprodução ideológica da família branca. Estar fora do círculo familiar e do jugo patriarcal sobre ele exercido representa, para a escrava, estar além dos limites e normas que regulam a sexualidade da mulher branca. A sexualidade da escrava aparece para o senhor livre de entraves ou amarras de qualquer ordem, alheia à procriação, às normas morais e a religião, desnudada de toda série de funções que são reservadas às mulheres brancas, para ser apropriada num só aspecto: o objeto sexual. As escravas aparecem aí sem honra e sem religião, ou seja totalmente à margem dos padrões morais e religiosos dominantes na sociedade. A utilização sexual da escrava pelos senhores, determinaria, em grande parte, o tipo de relação que cada membro da família patriarcal estabelece com ela. Assim, às escravas também passam ser as iniciadoras sexuais dos filhos do senhor. As relações sexuais entre o filho do senhor e a escrava parecem ter sido discretamente consentidas pela senhora. Mas, que tipo de relação sexual poderia emergir entre seres igualizados sob o chicote? A escrava era obrigada a ceder os desejos libidinosos se seu senhor para não se expor, com a recusa, a toda sorte de torturas; não poderia guardar a honra de sua filha, nem mesmo a sua contra tentativas do seu poderoso senhor e nem o escravo poderia queixar-se da infidelidade de sua mulher, e vingar-se de seu sedutor.
A Criança Negra e a Escravidão
Bem pouca atenção é dada ao estudo da criança escrava. Isto talvez se deva, em parte, ao fato de a população escrava, no Brasil, ter sido composta majoritariamente por homens e mulheres em idade produtiva. A baixa taxa de crescimento da população cativa, devido a menor proporção de mulheres do que de homens escravos, e as dificuldades de sobrevivência da criança escrava tem certamente contribuído ainda mais para ocultar este segmento.
Varias razões têm sido apontadas para a venda de crianças na África como escravas: eram consideradas como bocas inúteis em certas regiões e determinados períodos ; outras foram trocadas por prisioneiros; em épocas de carência, famílias se vendiam espontaneamente para não morrerem de fome, entre outros motivos. A falta de interesse por este tráfico devia-se ao fato de os escravinhos não serem imediatamente produtivos, aliado a isto, as altas taxas de mortalidade infantil e infanto-juvenil acarretavam riscos de grande prejuízos. Apesar desses fatores, o percentual de crianças embarcadas nos portos africanos chagou a representar, em certas épocas, cerca de 20% do total dos escravos traficados.
No Brasil, as crianças nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado aos negros. O moleque, pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. A vida de trabalho da criança escrava começava cedo. Depois de cinco ou seis anos de idade, essas crianças eram entregues a tirania dos outros cativos que os domavam a chicotadas, habituando-se à força aos rigores da vida escrava. Muitas vezes, desde pequenas as crias eram obrigadas a acompanhar suas mães ao campo e com elas compartilhavam várias atividades agrícolas: tiravam ervas daninhas, semeavam, apanhavam frutos, cuidavam de animais domésticos.
Aos sete ou oito anos iniciava-se uma nova etapa na vida das crianças escravas: passavam a fazer os serviços mais pesados e regulares. Deixavam para trás as ultimas regalias infantis, aquelas que viviam na casa grande e começavam a desempenhar funções especificas para sua idade ou já eram treinadas para a função que desempenhariam posteriormente. As crianças que ficavam na casa grande eram empregadas no serviço do senhor e de seus familiares, trabalhando como pajem, moleque de recado ou criada. Buscavam jornal, encilhavam os cavalos, lavavam os pés das pessoas da casa e mesmo de visitantes, escovavam as roupas, engraxavam os sapatos, serviam a mesa, espantavam os mosquitos, balançavam a rede, buscavam água no poço e carregavam pacotes e outros objetos. Nas fazendas, nos engenhos e nas chácaras, aos oito anos as crianças eram enviadas às plantações, colhiam e beneficiavam café, descaroçavam algodão, descascava,m mandioca, fabricavam cestos e cordas.
Assim como as meninas eram enviadas às “escolas de mucamas”, os meninos eram mandados para aprender algum oficio mecânico, como de sapateiro, barbeiro, marceneiro ou alfaiate. Meninas escravas carregavam os bebes brancos no colo, sendo obrigadas a cuidar das demais crianças. Mais barata, a criança escrava tornava-se uma mercadoria acessível às camadas intermediárias, dedicadas ao pequeno comércio e ao artesanato doméstico. Assim como havia mercado de trabalhos para as crianças africanas escravizadas, também havia para as crianças escravas nascidas no Brasil. Para muitos senhores era mais rendoso criar negros do que plantar café. Os rapazes de certa idade eram mandados para a cidade e entregues ao oficio pelos quais ganhavam dez vezes mais do que se fossem utilizados trabalhando na terra. Algumas crianças que trabalhavam descascando e lavando mandiocas, tinham os dedos duros, mutilados, tortos e calejados: “como as mãos dos escravos, pareciam haver perdido as características humanas.
A condição de criança escrava não livrava os escravinhos dos maus tratos: eram castigados, separados de seus familiares, trabalhavam duro, ficando muitas vezes com marcas físicas dos castigos e do excesso de trabalho. Alguns proprietários compravam crianças escravas como brinquedos para seus filhos; essas crias, transformadas em “tetéias por causa da pouca idade, ignoravam a distancia respeitosa que havia entre eles e seus senhores moços” e acabavam por se rebelar e fazer ameaças contra as dentadas, beliscões e outras tiranias em relação à idade mais ou menos avançada dos senhorzinhos; os pais , em vez de repreenderem seus filhos, castigavam rigorosamente a criança negra, cujo único crime o mais das vezes era fugir e não deixar o senhorzinho morder-lhe à vontade.
A Lei do Ventre Livre, na verdade não teve grande eficácia para melhorar as condições de vida da criança negra no Brasil. Ao lado da denuncia de perpetuação de fato de sua condição de escrava, destacou-se o prognóstico do aumento do número de abandono dos filhos de suas cativas, por parte dos senhores. No Rio de Janeiro, paralelamente à escravização de fato dos filhos de escravos após 1871, teve um significativo aumento do abandono de crianças negras, como conseqüência não desprezível da Lei do Ventre Livre.
Nas sociedades do antigo regime europeu era bastante difundido o costume de entregar recém-nascidos a amas de leite, que cuidavam da criança durante a primeira infância. Transplantada para o Brasil, esta prática tornou generalizados o aluguel e a compra de escravas para amamentarem os bebês das famílias brancas. Esse costume tinha como contrapartida a desintegração da frágil família escrava, separando as cativas de seus filhos. Desde a terceira década do século XIX, os médicos e sanitaristas da Academia de Medicina iniciaram uma vigorosa campanha contra o uso das amas-de-leite escravas, atribuindo dificuldades de aprendizagem, difusão de doenças como a sífilis e até mesmo apego a superstições, ao contato prolongado e íntimo das crianças brancas com as amas-de-leite negras, sobretudo as de origem africana. Em suas teses esses médicos evidenciavam o papel utilitário da Roda dos Expostos para os senhores que comercializavam escravas amas-de-leite, dando assim, um extraordinário aumento de crianças enjeitadas, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Não era de se estranhar que os senhores preferissem auferir os lucros proporcionados pelo aluguel das amas-de-leite do que arcar com o ônus da criação de seus filhos, correndo o risco de só poderem aproveitar-se mais tarde do trabalho de metade das crianças que havia sustentado, por causa das altas taxas de mortalidade da época.