Babalorixá

José Eduardo Cezimbra, conhecido no meio religioso como Tita de Xangô, filho de Vilmar Cezimbra e Ivone Moreira. Minha mãe era filha de Aristides Moreira, fruto do aproveitamento do dono da fazenda com sua escrava em Lages SC, veio para Porto Alegre na companhia de duas  irmãs em 1948 para trabalharem em casas de família como domésticas. Logo se separaram e cada uma se desvencilhou na vida a sua maneira. No inicio dos anos cinquenta minha mãe  passou a trabalhar na casa de uma senhora na rua Pedro Chaves Barcelos no bairro Mont’ Serrat,  lugar conhecido na época como Bacia, devido ao grande número de casas de religião  e pelo formato das ruas que lembram uma bacia. Este terreiro pertencia a uma mãe de Santo conhecida no  como Lida de Xangô, nós a chamávamos de vó Leda. Mãe Leda auxiliou minha mãe, já com dois filhos, em todos os sentidos possíveis inclusive a iniciou na religião.

Em 1963 minha mãe teve a terceira gravidez, desta vez muito complicada, com quatro para cinco meses de gestação teve uma grave ameaça de aborto, e com a interferência da eximia mãe de santo e dos Orixás eu nasci no dia 03 de março de 1964.

Hoje eu entendo que a dificuldade que a mãe passou era que eu estava querendo fugir desta árdua missão de ser Pai de Santo.  Era realmente um espírito “fujão”, que só através de determinados rituias vó Leda conseguiu me segurar; mas foi taxativa: terá que se chamar José e será um Babalorixá por escolha de Xangô, que era o mesmo Orixá da Yalorixá.

Nasci em uma terça feira às 18 horas em ponto. Fui criado na bacia do Mont’ Serrat. Mãe Nica de Bará, filha de Joãozinho de Bará, Exu Byí, foi a iniciadora de mãe Leda no Batuque de nação Jêje. Lembro-me que naquela época as crianças, durante as obrigações de matança e festas só participavam da mesa de Ibejis e quando os Orixás iam cantar seus axés para ir embora, aí a criançada era chamada para pegar as balas que os santos atiravam, lembram-me de muitas destas cenas na idade de cinco e seis anos, e  também dos banhos de axorô (sangue de animais sacrificados para as divindades), que nos davam muita força.

Fui batizado na Igreja Nossa Senhora da Auxiliadora e tive como padrinhos o Sr. Roberto e a Mãe Vera de Ossãe da nação Oyó, sobrinha de mãe Leda. Hoje,  minha madrinha Vera é esposa do Pai Antonio Carlos de Xangô, um grande Babalorixá do Batuque do Rio Grande do sul, nação Cabinda.

 Com o tempo minha mãe se afastou da casa de mãe Leda, e também de suas obrigações dentro da religião; eu deveria  ter uns oito anos de idade, já estava cursando o segundo ano primário. Nesta época fiquei muito doente, os médicos não estavam adiantando, e fui levado em algumas casas de religião, a resposta sempre foi a mesma, este menino pertence aos Orixás etc., faziam  alguns agrados aos Santos e eu melhorava, e este fato se repetiu por várias vezes. Minha mãe conta que, eu devia ter uns três ou quatro anos de idade, quando me levou para tomar passe numa sessão de umbanda na casa da mãe de um famoso Babalorixá e Chefe de umbanda chamado Vilson Ávila do Templo do Sol Urubatã e Oxum, e lá os caboclos também avisaram sobre meu destino.   Meu pai se separou de minha mãe e de nós, nesta época eu tinha nove anos, e daí em diante já tive que começar a ir em busca de trabalho para ajudar em casa; ele  era jardineiro,  aprendi a fazer as lidas do ofício, consegui trabalho nos jardins de muitas casas no bairro Chácara das Pedras, sabia também fazer ligações de água, e até instalar luz elétrica; comecei a tomar frente junto  nas despesas da casa, tinha uma grande preocupação com minha irmã mais nova, a qual ajudei a criar, e estava sempre procurando trazer dinheiro para não faltar nada. Acabando o quinto ano primário tive que mudar de escola, fui estudar no colégio Dom Luiz de Guanella, que fica na Rua Benno Mentz. Ia a pé, e sempre passava em frente a uma casa de religião na rua São Leopoldo, era a casa de Pai Tuia de Bará e do Pai Nininho de Ogum, pai carnal de Tuia de Bará. Todo o dia passava e ficava observando o movimento na casa; sentia uma grande vontade de entrar naquele Ilê, mas faltava “motivo”. Até que um dia um dos meus irmãos ficou doente; apareceu  nele uma grande ferida no pé, tipo lepra, e os médicos não estavam conseguindo curá-lo; uma vizinha sugeriu à minha mãe que o levasse na casa de Pai Tuia, e lá fomos nós; meu irmão ficou curado, e este acontecimento abriu caminho  para nossa aproximação; começamos então a frequentar este terreiro.

Nossa vida começou a mudar, demos um salto, para ter idéia do que passávamos, a cumeeira de nossa casa era coberta com uma lona e segura do dois lados com pedra e arame, dentro de casa chovia, como na rua. A primeira obrigação que fiz foi somente com ervas “omieró” no Ori (cabeça), após algum tempo fiz um Bori. Estava com dezessete anos de idade; e já era convocado para participar dos trabalhos junto com meu pai de santo e com a saudosa mãe Ormira de Xangô, minha vó e madrinha de cabeça e axés. No ano de mil novecentos e oitenta e um, Pai Tuia de Bará e Mãe Ormira de Xangô fizeram os assentamentos de minhas obrigações, na ocasião me deram de presente o “axé de facas e o axé de búzios”, isto ocorreu no dia doze de dezembro. Neste ano de dois mil e vinte  meu Orixá, Xangô Ogodô fará trinta e nove anos de assentamento. Convivia no meio de batuqueiros “velhos”, e guando levei meus pais para casa no dia 12 de outubro de 1982, estavam presentes no “toque” (batuque) babalorixas e ialorixas como: Pai Adão de Bará de Viamão (falecido), pai Paulinho de Iemanja (falecido), pai Nininho de Ogum (falecido), Mãe Ormira de Xangô (falecida), Sr. Adão de Bará (falecido) irmão carnal do pai Tuia, Delurdes de Oxum, representando a sua mãe carnal Miróca de Xangô (falecidas), mãe Branca de Oxum (falecida), mãe Pedrinha de Iansã (falecida) mãe Preta de Oxala (falecida) Vadinho de Lodê, esposo da saudosa Preta de Oxalá e irmão de Laudelina de Bará (falecidos), Sirlei de Iemanja, Gladis de Xangô, mãe Enedina de Xapanã (falecida), Laerte de Iemanja (falecido) mãe Delurdes de Xapanã (falecida), pai Ademar de Ogum (falecido)  e sua esposa Ní de Ogum, Irineu Ferreira (Casturino de Xangô), Ostílio de Oxalá, Zilá de Ogum entre outras pessoas tão importante quanto estas, que prestigiaram este grande momento de minha vida, o primeiro Orixá que “chegou” dentro de minha humilde casa foi o Bará (exu Biomí) do falecido Adão de Bará de Viamão, ele era um pai de santo muito respeitado, e foi um privilegio tê-lo recebido na abertura de meu ilê. Eu era um menino no meio dos anciões.

E assim venho seguindo minha caminhada religiosa, respeitando todos dentro da religião, do mais novo ao mais velho sacerdote. Não se deve julgar um bom sacerdote de Orixá pela sua grandeza física, por suas roupas finas, pela beleza e quantidade de guias e ouro que usa no pescoço, mas sim pelo seu ser, por aquilo que representa dentro do culto; conheci pais de santo como o pai Pedro de Iemanja, Pai Henrique de Oxum, mãe Antonia de Bará, e outros tantos, e todos eram humildes, apesar da sabedoria que tinham, um pai ou mãe de santo eram conhecidos pelos fundamentos que possuíam, por seus trabalhos, pela sua história, não precisam fazer anúncios em jornais ou mostrar seus fundamentos na mídia. Um sacerdote tem que respeitar o outro, temos que ter ética, limites, não precisamos se encher de “impafe”, pensar que somos os maiorais, que nada nos atinge. Somos julgados a cada ato que cometemos, somos observados, não vimos, mas com certeza, somos observados, e todos atos julgados. Um irmão deve dar a mão para o outro, nos momentos de necessidades, sempre precisaremos de alguém, temos subidas e decidas, não ficamos estagnados,  firmes  na  vitória,  todos   temos  momentos em que precisamos da ajuda do outro.

Falando em ajuda, a uns vinte anos atrás precisava de esclarecimentos  de algumas dúvidas sobre a minha trajetória, então resolvi que iria buscar alguém para me orientar; queria gente desconhecida, então viajei à Salvador BA.

Hospedei-me no Hotel Pálace, na Praça da Sé e dali comecei a busca , mas daquela vez não encontrei ninguém que me desse um rumo, porém,  fiquei muito feliz quando cheguei na Casa Branca e fui recebido por mãe Nitinha de Oxum, o terreiro estava cumprindo luto, mas,  ao saber que eu era filho de Xangô, me convidou para ir em sua casa em um bairro ao lado do terreiro, esta senhora me acalentou, não tivemos nenhuma ritualística religiosa, porém , foi muito acolhedor estar com ela e ouvi-la. Mãe Nitinha de Oxum foi a primeira mulher a se aposentar com o ofício de mãe de santo, descobri o fato numa entrevista que ela deu, após alguns anos, no programa do Jô Soares.

Voltei para Porto Alegre, mas senti que tinha algo a minha espera na Bahia. Após oito meses viajei novamente para Salvador. O hotel Pálace entrou em falência e fechou, então por indicação do meu pai de santo, Tuia de Bará, me hospedei no hotel Chile,   ficava bem à frente do antigo Pálace. Nos dias atuais o Hotel Pálace está aberto novamente.

Fiquei pensando como iria ter contato com  alguém  que pudesse me dar um caminho; resolvi pesquisar no  guia telefônico de Salvador;  folhei muito, até que achei o número de uma associação tipo a nossa Afrobras de Porto Alegre. Pedi a indicação de alguém que não fosse folclore,  e sim um (a) religioso (a) de fundamento. A pessoa que atendeu a ligação disse-me: procure o Balbino de Xangô, e me passou o contato dele.

Liguei para o terreiro Ilê Axé Opô Aganjú e Pai Balbino me deu o endereço do terreiro e marcou para me atender no dia seguinte bem cedo da manhã. Tentei negociar para ir à tarde, mas foi taxativo venha cedo pois tenho ordem das minhas entidades para não atender à tarde.

Eu estava em Salvador  e o terreiro é em Lauro de Freitas, não conhecia nada pra aqueles lados, mas fui e encontrei Balbino bem cedo. Levou-me para jogar búzios na casa de Ogum. Vesti-me com bastante simplicidade com uma pessoa comum para que não fosse identificado como religioso.

Pai Balbino  esfrega as mãos com os Búzios  fazendo a chamada dos Orixás, quando chegou na vez de Xangô; parou e me disse: quem é uma mulher em sua volta de nome Janaína, e eu respondi: – é a minha esposa, aí eu já senti a força de Balbino; continuou chamando os Orixás e jogou os Búzios sobre a peneira; me afirmou: você é sacerdote de Orixá, você é pai de santo, é filho de Xangô Ogodô, pois ele está lhe convidando para ir na casa dele!!!, me diga o que você veio fazer aqui?, eu respondi: o senhor já me respondeu, queria saber sobre esta  missão de ser pai de santo.

Conversamos um bom tempo e depois me levou à casa de Xangô onde se ajoelhou junto comigo e fez uma belíssima chamada em yorubá, que me arrepiou dos pés à cabeça. Saí daquele terreiro  com a sensação de estar flutuando. Pai Balbino, em 1999, foi a pessoa responsável por abrir a minha porta para por filhos em obrigação, pois até então, eu joga búzios, fazia trabalhos, mas quando alguém tinha de fazer obrigações de cabeça eu levava pro pai Tuia ou indicava outros terreiros; já tinha feito iniciação para poucas pessoas de muita necessidade, mas no geral eu passava para outros sacerdotes.

Pai Balbino me disse que esta missão de ser  pai ou mãe de santo é como se fosse um  “castigo” do Orixá, pois não é nada fácil, e eu concordo plenamente,  tomar conta e se responsabilizar espiritualmente pela vida de muitas pessoas, as vezes de famílias inteiras, mas não podemos fugir do caminho que nos foi destinado pelos Orixás.

Naquele momento eu não entendi que ser convidado pelo Orixá, principalmente por Xangô, era uma honraria, ainda mais quando fiquei sabendo que o pai carnal, o tio mais velho e o avô de Balbino eram filhos de Xangô Ogodô. Então nesta ocasião, eu estava sendo convidado por um Xangô assentado a mais de um século.

Voltei para Porto Alegre, já convencido que teria que assumir de uma vez por todas a missão de ser pai de santo, e daí em diante minhas portas se abriram e hoje me sinto orgulhoso de ser escolhido para este caminho de ser sacerdote de Orixá.

Nada neste mundo é por acaso; com o passar dos anos descobri que este encontro com pai Balbino não foi em vão, pois na primeira ida a Salvador, na última noite, meu irmão de santo, Alexandre de Ogum, me buscou no hotel para ir dormir em sua casa, em Lauro de Freitas, pois ficava bem próximo do aeroporto, por que  o  voo de volta  seria bem cedo. E sem saber,  a casa de Alexandre ficava à  duas ruas do terreiro de Balbino.

Outro acontecimento interessante foi o fato de ter assistido uma palestra de Pierre Verger no inicio da década de oitenta, no lançamento do livro Orixás  no teatro de Atos da URGS, em Porto Alegre,  e assistindo  o documentário que o Gilberto Gil fez no Brasil e na África chamado Mensageiro entre Dois Mundos, descobri que Verger morou no quarto 102 do Hotel Chile, e foi exatamente neste quarto que me hospedei quando tive o primeiro contato com pai Balbino. Pierre Verger era irmão de santo de Balbino e depois, com a morte de mãe Senhora de Oxum Miwa, passa ser seu filho de santo, e era, também, filho de Xangô.

Sem interesse algum, nas minhas pesquisas sobre religião africana  no Brasil, assisti um outro documentário que o programa Globo Repórter fez sobre a vida de Balbino Daniel de Paulo, e no início deste, as primeiras imagens são do Forte de São Marcelo que fica dentro do mar na cidade baixa, e o mercado modelo, exatamente a imagem que avistava quando abria a janela no quarto do Hotel Pálace da primeira viagem à Salvador.

Para resumir um pouco, digo que eu e pai Balbino ficamos amigos muito próximos, até levei meu pai de santo Tuia de Bará no terreiro dele, pois nada, absolutamente nada foi feito escondido. Não mudei uma vírgula de meus rituais dentro da nação Ijexá no Batuque do Rio Grande do Sul, mas posso afirmar, e pai Balbino está bem vivo para confirmar, que me ensinou muitos fundamentos de santo, inclusive o uso das folhas e nomes em yorubá, que é uma riqueza dos nossos rituais africanos, já que estou falando de uma pessoa que viajou muitas vezes para África para aprimorar seus conhecimento no culto aos Orixás,  em fim,  já participei de algumas obrigações no terreiro,  e sou muito bem recebido com minha família no Ilê Axé Opô Aganjú, com muita honra.

Outra pessoa que faço questão de citar que fez parte do meu crescimento é o pai Pedro de Iemanjá, que morava na Rua Mariano de Mattos em Porto Alegre. Este pai de santo me abriu as portas de sua casa; o primeiro Balé que entrei foi no terreiro dele e posso afirmar que além do meu pai de santo, foi com pai Pedro Barbosa de Lima que aprendi “alguma coisinha” dos nossos rituais de Batuque, agradeço à Deus e aos Orixás ter encontrado pai Pedro  que hoje está no Orum, mas continuo as voltas com sua família consanguínea.

Não poderia deixar de citar outras fontes de muito conhecimento dentro do Batuque do RS que me deram alicerce dentro da religião, como minha vó de santo e madrinha de Orí, mãe Ormira de Xangô e mãe Antonia de Exu Elupandá. Mãe Ormira era filha de santo do saudoso Manoel Matias.

Manézinho de Xapanã e tia Antonia de Bará eram filhos de santo de Pai Paulino de Oxalá Efan, este criado por duas  escravas oriundas da cidade de Ijexá na Nigéria.

Tive o privilégio de crescer  com esta ligação com pessoas que realmente sabiam muito de santo e rituais de Egum, entre os que já citei e não poderia deixar de mencionar o Babalorixá e tamboreiro do Ijexá, Ademar de Ogum, que sempre  fazia parte das obrigações na casa de mãe Ormira e de Pai Tuia.

Em fim, agradeço a todos estas pessoas, tanto os vivos quanto os que já foram para o Orum pela oportunidade de conviver e aprender um pouquinho sobre os fundamentos preciosos da nossa religião de origem africana.

A benção de todos!

Tita de Xangô

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